José Mário Branco | 22-06-2019

Excertos da intervenção de José Mário Branco no Colóquio  “De não saber o que me espera: nos 90 anos de José Afonso”. Casa Verdades de Faria, Estoril, 22 de Junho 2019,organizado pelo INET e pela AJA

I

(…) eu estudei música, e sobretudo etnomusicologia. Por isso é um acontecimento eu estar aqui nesta casa. Tive o privilégio de conhecer a primeira antologia do Giacometti, de Trás-os-Montes, antes de ser publicada, com o Lopes-Graça lá no Porto a entrar com o disco-prova na mão e a dizer vocês têm que ouvir isto. Estávamos em casa da Ilse Losa e do Arménio Losa, porque a filha mais nova era do nosso grupinho, a Margarida Losa. Estávamos naqueles sábados à tarde, naquelas coisas, a dançar e a tocar as Heróicas do Graça, a tocar e a cantar, e entra o Graça, que era amigo da casa, com o vocês têm que ouvir isto. Claro que tirámos do pick-up a música que estávamos a dançar e pusemos aquilo a tocar e ao fim estávamos todos a chorar de emoção com aquela coisa extraordinária, apesar de alguns de nós conhecerem os Cancioneiros entretanto recolhidos por outros etnomusicólogos: Mário Gonçalo Sampaio, Vergílio Pereira, Armando Leça, vários. Isto para dizer que estávamos habituados a ouvir coisas de boa qualidade, de grande qualidade. Talvez tenha sido na música tradicional recolhida por essa gente toda, mas sobretudo pelo Michel e pelo Graça, que eu percebi do que foi capaz a filtragem dos séculos. Aquela coisa de a gente dizer uma obra que resiste ao tempo. Essa música tradicional que eles foram buscar e estudar e comentar era como aqueles mamutes da Sibéria enterrados no gelo, intactos. Só faltava o toque da fada para eles ficarem vivos. Era isso a sensação que dava. Então a voz do Zeca funcionou para mim como o acordar dos mamutes. Ah, tão vivos. Afinal estão vivos. Não sei quantos milénios mais tarde, não sei quantos milhões de anos mais tarde, o mamute está vivo. Estava no gelo e agora está aí a vibrar como um cristal. Pronto, isto foi o primeiro contacto. Claro que a partir daí a influência do Zeca em tudo o que eu quisesse fazer era decisiva, sem o conhecer.

II

A primeira canção que eu compus foi nos curros do Aljube, em Maio de 62. Os curros, alguns eram de uma pessoa só, e a maior parte, ao longo do corredor, eram de duas pessoas. Eram celas muito estreitas, não dava para abrir os braços. Havia umas caminhas, os catres, que de noite desciam para a gente dormir ali e depois, quando acordávamos, tinham que se prender à parede. Fiz 20 anos num curro do Aljube em que o meu companheiro de cela (…) era um psiquiatra-poeta de Coimbra, um pouco mais velho do que eu, chamado Lousã Henriques. Bom poeta. Fez-me um poema no dia em que eu fiz 20 anos, e eu fiz uma cantiga. Nunca tinha feito. Eu cantava as músicas que havia. Nem sabia tocar viola. Tinha aprendido piano, tinha aprendido violino, as flautas didácticas, as percussões didácticas do Orff, e tal. Tinha aprendido um pouco de composição, análise musical, direcção de orquestra… na escola Parnaso, no Porto, mas nunca tinha feito música, canções.

Essa primeira balada… era horrorosa, era uma balada de Coimbra. A que propósito ? Eu fui até estudar para uma Coimbra que não era nada dada a essas práticas. A malta queria era agitar o ambiente, acabar com as praxes, publicar artigos do contra na Via Latina, no jornal da Académica, dinamizar uma coisa extraordinária na altura que era o Centro de Estudos Marxistas da Associação Académica… Estávamos noutra. Então porque é que eu faço uma balada de Coimbra ?

(…) O meu pai adorava o Menano, o Bettencourt, o Paredes pai – o Artur Paredes -, etc. O meu pai gostava muito de música e gostava de os ouvir. [Eu] não ia muito mais longe do que isto. Foi o meu segundo encontro com José Afonso, foi querer ir na esteira dele. Havia outro que já cantava na altura e eu gostava muito de o passar na rádio. Era o Goes. (…) era a voz dele que tinha uma coisa estranha, meio nasalada, mas depois, se reparássemos bem, aquilo não era nasal, aquilo era outra coisa, era uma modulação que ele tinha na voz que mais ninguém tinha na altura.

III

Depois houve esse projecto do disco das cantigas de amigo, que foi para a frente, e começou a haver telefonemas. Zé Mário, quer gravar um disco, e tal ? O Arnaldo, por um lado (eu já conhecia o pessoal desta área toda: o Adriano, o Zeca, o Vitorino, por aí fora. O Vitorino também ia a Paris frequentemente), e o António Marques de Almeida, duma Sassetti revigorada, renascida das cinzas, com dinheiro fresco do … Granadeiro.  (…) E portanto aquilo passou a ser assim com malta de esquerda, muita gente ligada ao PCP. Começou a haver telefonemas, por influência do Zeca, acho eu. Então em 70, reparem, eu estou a ter isto tudo a dois mil quilómetros de Lisboa, mil e oitocentos quilómetros de Lisboa, com duas ditaduras fascistas pelo meio. Portanto é uma coisa para mim muito lá longe. Qual é que foi o meu, não digo reflexão, foi instinto? Foi sonhar um disco, tentar ouvir esse disco na minha cabeça e perceber que fazer esse disco em França era uma coisa muito difícil, porque era preciso músicos, era preciso um estúdio bom. Um músico de estúdio bom em França custava cinco vezes mais o que custava em Portugal. Um estúdio bom em França custava cinco vezes mais o que custava em Portugal. Os orçamentos, portanto, para se fazer nessas condições o trabalho que eu sonhava, eram dificilmente suportáveis por uma editora portuguesa, por melhor que fosse. (…)

Então, para resumir a história, há dois telefonemas que são decisivos, isto quando o Zeca é portador de uma fita em que estão coisas minhas e coisas do Sérgio, gravadas lá em casa.  É o telefonema do Arnaldo, que me diz: Oh Zé Mário, vamos gravar, você grava aí… E é o do António Marques de Almeida, com uma conversa parecida. Que é que havia além disso, na conversa com o Marques de Almeida ? Era que eu estava a acompanhar o movimento da Sassetti, das edições de música clássica da Sassetti, que me interessavam muito. Aquelas antologias de música erudita ocidental, Mário Vieira de Carvalho, Manuel Jorge Veloso, por aí fora. Reparem, mil e oitocentos quilómetros. Sem telemóveis. Estas coisas todas ganhavam um peso grande… Nós comprávamos o Le Monde todos os dias, e o Libération, para ver se vinha alguma coisinha sobre Portugal. É um contexto diferente. E o Marques de Almeida o que me diz é: Oh Zé Mário, é o estúdio que você quiser, com os músicos que você quiser, e o tempo que você quiser. Do Arnaldo eu tinha a favor o trabalho espantoso que ele estava a fazer com a, digamos, canção de protesto, se assim se pode chamar. Com a canção poética. Só depois vim a perceber, por entrevistas suas, que também teve influência nisso o seu convívio com Poetas, lá no Porto, que era uma coisa que nós também fazíamos. Íamos para o café Rialto, para o lado da mesa deles, ouvir as conversas. Catorze-quinze aninhos, ali sentados ao lado da mesa dos neo-realistas, o Egito Gonçalves, o Daniel Filipe, Rebordão Navarro, o Veiga Leitão, e ás vezes o Eugénio de Andrade. O Papiniano Carlos, etc. Nós íamos para a mesa ao lado, disfarça, meu filho, disfarça ouvir as conversas, não era dos admiradores, era dos admirados.

IV

Há primeiro o grande susto. O grande susto, que é [o Zeca dizer]: Oh Zé Mário, se calhar giro era tu, pá, dirigires o próximo LP que eu vou gravar. Grande susto. Meu deus. O que é que eu faço? o que é que eu faço? o que é que eu faço? Então, apressei-me a avançar com o projecto do meu primeiro álbum, porque eu tinha muito pouca experiência de estúdio. Eu tinha feito uns arranjos, quatro arranjos profissionais, para um cantor francês que conheci no Maio de 68. Daqueles cantores franceses típicos da canção poética do pós-guerra, James Ollivier. Tem um LP em que há quatro arranjos que são feitos por mim, já a pensar como é que se trabalha em estúdio. Mas de resto, tinha gravado as cantigas de amigo numa garagem, com um rebox de duas pistas, portanto com sobreposições e pré-misturas… e tinha gravado o single clandestino, clandestino não, ilegal, da ‘’Ronda do soldadinho’’, financiado pelas associações e pelas organizações políticas da resistência, noutra garagem.  Tudo assim sempre um bocado à baldex, com os meios de bordo.

Agora, ir para um estúdio bom, a primeira vez que fui foi com o James Ollivier. Tinha essa pequena experiência, de ver músicos que eu fui buscar de propósito, porque qual é o complexo de um gajo como eu que está nessa situação ? Eu quero é que venham os melhores, pá. Para ser bom, para tocarem bem, para soar bem. Então a tendência era ir buscar o que lá se chamava Les requins de studio, os tubarões de estúdio, aqueles gajos muito bons e muito eficazes que tocavam que se fartavam e que apreendiam as coisas depressa, porque o problema era a gente estar a gravar num estúdio caro.

O do Ollivier foi o estúdio Davout, que era o estúdio mais caro de Paris,  e a gente estava a gravar, como depois em Hérouville. Era incrível, porque a gente estava a gravar e a ouvir os contos de reis a pingar na factura. Pong, pong, pong, não era cá  como os Beatles com o George Martin. Ah, agora vamos gravar um bocado, e estavam ali uns meses e tal, e divertiam-se e não sei quê. Ah, agora vamos para férias, vamos passear. Ah, agora apetece-nos voltar para o estúdio. E lá iam eles pela Abbey Road outra vez. Não era assim. Portanto, havia essa noção, ai ai ai o que é que eu faço ? O estúdio que você quiser, com os músicos que você quiser, o tempo que você quiser. E foi, de facto, esta frase que fez com que eu escolhesse a Sassetti em vez do Arnaldo.

Jose AbreuJosé Mário Branco | 22-06-2019