José Afonso: Uma obra intemporal
José Afonso: Uma obra intemporal
José Afonso viveu, empenhado e generoso, boa parte do século XX português. Ajudou a transpor a fronteira da ditadura para a democracia. Ergueu a voz contra o fascismo, solidarizou-se com a luta dos povos coloniais pela independência nacional. Sofreu perseguições, passou pelas cadeias políticas, resistiu e incentivou todos os que se opunham à ditadura. Cantou a liberdade e a utopia, quis torná-la realidade. Juntou a sua voz às múltiplas vontades colectivas, às esperanças inflamadas que se levantaram no período revolucionário de 1974-75. Foi alavanca da resistência quando os cravos começaram a murchar, inconformista e insubmisso, internacionalista convicto. A sua voz nunca deixou de se erguer contra o medo, a repressão ou a indignidade. A sua obra e a sua acção projectam-se hoje, intemporalmente.
Nasceu em 1929, em Aveiro, filho de uma família de classe média. As circunstâncias profissionais do seu pai, Juiz de Direito, nem sempre permitiriam que o acompanhasse por paragens coloniais distantes onde ia sendo colocado. Viveu em Angola e regressou a Aveiro, viveu em Moçambique, depois em Belmonte, estudou em Coimbra. Aí se fez homem e cantor, enquanto os seus pais se transferiam de Moçambique para Timor, onde durante três anos estiveram incontactáveis. Foi em Coimbra, ainda estudante liceal, que se iniciou nas serenatas de fados tradicionais, vindo a integrar o orfeão e a tuna académica, com quem viajou pelo país e por Angola e Moçambique, cantando. Jogou futebol na Académica. Casou pela primeira vez ainda muito jovem. Edita os primeiros discos em 1953. Frequentou, entrecortado pela tropa e pelas canções, o curso de Histórico Filosóficas, que concluiria em 1963. Para subsistir dá explicações e é revisor de imprensa.
Em 1956 começa a dar aulas em Mangualde como professor provisório. Deambula pelo país. O ano de 58 é crucial na sua vida. Como a tantos da sua geração, a campanha eleitoral do General Humberto Delgado cimenta o à esquerda. Começa a cantar regularmente em colectividades de cultura e recreio. Acompanha, entusiasmado, a crise académica de 1962. No Algarve, onde dá aulas, conhece Zélia, com quem virá a casar. Evolui do fado tradicional à balada, trabalha temas populares, rompendo com o espartilho formal em direcção novas sonoridades e a novos temas, onde se começa nitidamente a reflectir a sua enorme sensibilidade social e política.
Em 1964 já com sete discos publicados, desloca-se a Grândola, para actuar na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde, emocionado com a recepção e o ambiente aí vivido, compõe Grândola, Vila Morena, que virá a ser a senha do movimento militar que em 25 de Abril de 1974 derruba a ditadura. Nesse ano ainda parte para Moçambique, onde permanece, leccionando, durante três anos. Regressado a Lisboa, é expulso do ensino oficial, radica-se em Setúbal e continua a cantar em meios oposicionistas, no movimento estudantil ou no movimento sindical que se alarga com a chamada “primavera marcelista”. Continua a editar discos, a uma cadência praticamente anual.
A sua capacidade de criação é extremamente fecunda. A obra artística e a acção militante interpenetram-se cada vez mais. Em 1971, com arranjos musicais de José Mário Branco, então exilado em Paris, edita Cantigas do Maio, a que se sucedem outros mais. A PIDE-DGS anda no encalce da sua obra e das suas deambulações. Em 1973 é preso. Muitas das suas canções são proibidas pela Censura.
Em Março de 1974 participa no I Encontro da Canção Portuguesa num Coliseu lotado em que se pressente o fim próximo do regime.
Com a Revolução de Abril, envolve-se intensamente no processo revolucionário, canta em fábricas e herdades, em bairros populares e quartéis. Está nas campanhas de Dinamização Cultural promovidas pelo MFA, canta no quartel do Ralis depois da tentativa de golpe spinolista. Apoia as nacionalizações e a Reforma Agrária. Está ao lado dos trabalhadores do jornal República, em favor de quem edita em Itália, acompanhado de Francisco Fanhais, um disco de solidariedade. É muito próximo da LUAR, para quem edita um single.
Não se resigna com o estancamento do processo revolucionário a 25 de Novembro de 1975 e, no ano seguinte está na primeira linha do apoio activo à candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, apoio que repetirá em 1980. É publicamente solidário com os presos do processo do PRP, como depois com os do processo das FP-25. Em 1985 manifesta a sua solidariedade com o povo de Timor. Em 1986 apoia, já bastante doente, a candidatura presidencial de Maria de Lurdes Pintassilgo. A partir do final de 1975, retomara a edição de discos. Mais sete até 1984, com Galinhas do Mato e, ostracizado internamente, faz numerosos espectáculos no estrangeiro. Em 1983 dá um memorável concerto no Coliseu dos Recreios, praticamente o último da sua carreira, de que é gravado disco.
A doença, cujos primeiros sinais se manifestam em 1982, progride irremediavelmente, vindo a falecer em 23 de Fevereiro de 1987. O seu funeral, em Setúbal é uma impressionante manifestação de pesar. A sua obra continua porém a projectar-se intemporalmente.
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, nasceu em Aveiro em 2 de Agosto de 1929, segundo dos três filhos de José Nepomuceno Afonso, juiz, e de Maria das Dores Dantas Cerqueira, professora de ensino primário.
As circunstâncias profissionais do pai levam, logo em 1930, a família para Angola, onde fora nomeado Delegado do Procurador da República. José Afonso, por motivos de saúde, não acompanha os pais e o irmão, ficando ao cuidado de tios paternos, em Aveiro, juntando-se-lhes dois anos mais tarde, a instâncias da mãe. Esta primeira, como outras passagens por África, marcará a sua vida e a sua obra. Em 1937 regressa a Aveiro, acolhido de novo por tios, agora maternos; porém por passagem breve, porque se juntará aos pais numa igualmente breve passagem por Moçambique.
Em 1938 vai viver para Belmonte, enquanto os pais pouco depois rumarão a Timor onde viverão, incontactáveis, a conjuntura da Segunda Grande Guerra, marcada na ilha pela invasão japonesa. É em Belmonte que faz os primeiros estudos, na casa de um tio, presidente da Câmara Municipal e fervoroso adepto do regime de Salazar.
Em Coimbra conclui os estudos liceais e ingressa na Universidade. É o tempo da vivência estudantil, das serenatas, dos fados tradicionais e do futebol na Académica. Participa no Orfeão e na Tuna Académica, deslocando-se em digressão pelo país e pelas colónias. Aí conhece António Portugal e Luís Goes. O curso de Histórico-Filosóficas, que frequenta, vai-se arrastando. É em Coimbra que casa com Maria Amália e onde lhe nascem os dois primeiros filhos. Para subsistir dá explicações e é revisor no Diário de Coimbra.
Cumpre penosamente um serviço militar para que não estava de todo talhado, primeiro em Mafra, depois em Coimbra, atravessando grandes dificuldades económicas. Vive uma crise conjugal, acabando por se separar. São difíceis esses anos cinquenta. Começa a dar aulas como professor provisório, ainda com o curso por concluir. Volta a Angola com a Tuna Académica. Em 1957, actua pela primeira vez no estrangeiro, em Paris.
Evolui do limitado formalismo lírico do fado de Coimbra para as temáticas de raiz popular, que o levam às baladas. É por esses anos que começa a actuar em colectividades e associações populares.
É ainda em Coimbra que em 1953 edita os primeiros discos, em 78 rotações, pela Companhia Portuguesa de Discos/Melodia. São dois singles com fados de Coimbra, de que não se conhecem exemplares, mas cujos temas foram reeditados no disco Coimbra, de 1972.
Em 1960 edita Balada de Outono, pela Rapsódia, onde a introdução de temas populares se torna particularmente significativa, como o Vira de Coimbra, aprendido com uma cantadeira dos ambientes populares da cidade.
Em 1956, José Afonso, ainda sem o curso concluído, começa a dar aulas em Mangualde num colégio particular, depois em Aljustrel e de seguida em Lagos, já no ensino oficial. Quando ocorre a campanha de Humberto Delgado, em 1958, está em Faro e as movimentações populares impressionam-no profundamente. Desses anos dirá: “foi uma fase de euforia extremamente gratificante e das coisas mais felizes da minha vida”.
Pratica desporto, mergulha num ambiente diferente, faz amigos, convive, conhece alunos nos cursos nocturnos com quem partilha a oposição ao regime.
Ainda a viver no Algarve, mas sem perder as ligações a Coimbra grava em 1960 Balada do Outono, a primeira canção que José Afonso gravou com letra e música exclusivamente suas. Em 1961 conclui a licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas com uma tese intitulada “Implicações substancialistas na filosofia sartriana”.
Nesse ano e em 1962, é ainda do Algarve, mas deambulando pelo país e saindo ao estrangeiro, que assiste e toma conhecimento das múltiplas iniciativas de uma Oposição ao regime mais radicalizada e cada vez mais diversificada (desvio do Santa Maria e do avião da TAP, assalto ao quartel de Beja, jornadas de 1 e 8 de Maio de 1962, crise estudantil…).
Em 1962 começa a ser acompanhado por Rui Pato, colaboração intensa e frutífera que se prolongará até 1969. É justamente acompanhado por Rui Pato que em 1963 grava o EP Baladas de Coimbra, onde inclui temas de forte expressão social e política, como Menino do Bairro Negro e Os Vampiros, que a Censura rapidamente proibiria.
Do Algarve fará ainda em 1963 a primeira e única intervenção televisiva antes do 25 de Abril, onde se mantém até 1964. Conhece Zélia, com quem se virá a casar, vencendo adversidades e resistências sociais. É o seu segundo casamento.
A partir do Algarve José Afonso multiplicava as suas deslocações pelo país, cantando em colectividades populares, particularmente na Margem Sul e no Alentejo. Foi nessas circunstâncias que foi convidado para actuar na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, a Música Velha, uma colectividade com intensa actividade, que assinalava o seu 52º aniversário, numa sessão em que também participou Carlos Paredes.
Foi aqui que cantou pela primeira vez Cantar Alentejano, que evoca o assassinato de Catarina Eufémia, dez anos antes, numa letra de António Vicente Campinas.
Impressionado com o ambiente caloroso que encontrou e com o dinamismo das actividades desenvolvidas, José Afonso compõe, no regresso, Grândola Vila Morena, numa versão ligeiramente diferente, mais longa da que ficaria emblematicamente conhecida, que seria cantada em público pela primeira vez em Santiago de Compostela.
A polícia política vigia-o, persegue-o, proíbe as actuações, os discos, as entrevistas … Todavia, esta é uma fase de intensa actividade de José Afonso.
Em Setembro de 1964 José Afonso parte com Zélia para Moçambique. Na realidade, regressa a Moçambique, onde estivera em criança e onde se encontravam os seus dois filhos do primeiro casamento, ao cuidado dos avós. Passa um ano em Lourenço Marques, actual Maputo, onde dá aulas no Liceu António Enes, convivendo com oficiais e civis mais ou menos conotados com a oposição branca ao regime colonial e fascista, cantando a sua música de intervenção em sessões privadas. Mas não enjeita o convívio com a população local e frequenta também o Centro Associativo dos Negros, onde por sua vontade dá aulas nocturnas.
Sensível aos problemas colocados pelo colonialismo, torna-se suspeito aos olhos das autoridades coloniais e é compulsivamente transferido para a cidade da Beira.
Frequenta aí o Cineclube local, participando com música na peça A Excepção e a Regra, de Brecht, autor proibidíssimo em Portugal. Quatro das canções que compõe para esta peça serão editadas mais tarde no álbum Coro dos Tribunais, como a canção que dá título ao disco ou Eu marchava de dia e de noite…
Vigiado, acusado de se opor ao colonialismo e à guerra colonial, num ambiente que se torna cada vez mais sufocante e opressivo, regressa em 1967.
A influência dos ritmos africanos reflectir-se-á na sua obra através das sonoridades e do recurso a instrumentos tradicionais de percussão, designadamente na canção Lá no Xepangara, um subúrbio da cidade da Beira, e criada no barco, na viagem de regresso.
No regresso de Moçambique instala-se em Setúbal, leccionando no Liceu Nacional de Setúbal, vindo a ser proibido de dar aulas e expulso do ensino por motivos políticos, vendo-se obrigado a dar explicações em casa. O livro Cantares de José Afonso, editado por uma pequena editora de Tomar é apreendido pela PIDE em 1968.
É, em 1969, um dos fundadores do Círculo Cultural de Setúbal, uma importante organização que congrega jovens oposicionistas de diferentes sensibilidades. Convidado, multiplica a sua intervenção em sessões públicas nas colectividades e cineclubes, um pouco por todo o país, designadamente na Margem Sul do Tejo.
Em 1969 edita Contos Velhos Rumos Novos, que inclui a canção Era de noite e levaram , numa clara alusão à PIDE, mas também temas populares como São Macaio. Ainda nesse ano surge o EP Menina dos Olhos Tristes, em que a canção que dá título ao disco e outras como Canta camarada canta constituirão temas de grande circulação particularmente entre a juventude estudantil.
Colabora com a oposição democrática nas CDE, estruturas de oposição ao regime, relativamente toleradas em período eleitoral
Em 1970 grava em Londres o disco Traz outro amigo também, onde está incluída a canção Epígrafe para arte de furtar, que tem como letra um poema de Jorge de Sena, mas também temas inspirados no cancioneiro da Beira Baixa, como Maria Faia ou Moda do Entrudo. Este álbum marcará uma importante viragem na obra de José Afonso, com os acompanhamentos à viola de Carlos Correia (Bóris).
O LP Cantigas do Maio, editado no Natal de 1971 e gravado em Outubro desse ano num estúdio em França com direcção musical de José Mário Branco será mais tarde considerado por um painel de 25 críticos musicais como o Melhor Álbum de sempre da Música Popular Portuguesa.
O disco inclui a canção Grândola Vila Morena, inspirada na música tradicional alentejana, evocando um grupo popular coral alentejano, cujo início lembra o passo arrastado dos seus cantores, desfilando pelas ruas das violas e aldeias do sul de Portugal, efeito conseguido no pátio de chão de saibro à entrada do estúdio com José Afonso, José Mário Branco, Francisco Fanhais e Bóris arrastando os pés, de braço dado circulando em volta de um microfone.
Em 30 de Abril de 1973, José Afonso é preso pela polícia política, a PIDE-DGS. Há muito que vinha sendo vigiado, perseguido. Muitas das suas canções haviam sido proibidas pela Censura. Não obstante, continuara a cantar, entre estudantes e trabalhadores, nas universidades ou nas colectividades populares, nunca se negando aos inúmeros convites que lhe faziam, à medida que o regime, a ditadura, ia apodrecendo. Havia aliás estado, poucos dias antes de ser preso, no III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro e cantara aí O que faz falta, uma das suas canções mais mobilizadoras e que só poderia vir a gravar depois do 25 de Abril.
Nos 21 dias em que foi mantido em regime de isolamento numa cela do forte de Caxias, com o papel e lápis que ao dia autorizaram que tivesse, escreveu cartas à família, à mulher Zélia e aos filhos, e poemas, muitos, com que resistia às agruras do arbítrio, alguns musicados depois, como Era um redondo vocábulo, outros mantendo-se originais, como este, escrito a 11 de Maio de 1973, que se inicia assim: “Há uma luz pura, cimeira/ Neste invólucro ao meio dia…
Em 29 de Março de 1974, menos de um mês antes do golpe militar dos capitães, realizava-se no Coliseu de Lisboa, o I Encontro da Canção Portuguesa, a pretexto da entrega de prémios da Casa da Imprensa relativamente ao ano de 1972.
Nesse dia, já passava muito da hora marcada e ainda o espectáculo se mantinha proibido. Na rua, transbordando de uma sala completamente cheia, aglomerava-se muita gente. Assistir era um acto protesto contra a ditadura e o regime sabia-o bem, por isso proibiu trinta canções e poemas de integrarem o reportório do espectáculo!
Os cantores entraram em palco em grupo, fazendo-se acompanhar uns aos outros – José Afonso, Manuel Freire, José Barata Moura, Fernando Tordo, Intróito, Adriano Correia de Oliveira. Afinal, todos se identificavam como parte de um movimento informal dos que levantando a voz e cantando, assim participavam no combate ao fascismo e à guerra colonial.
Na sala, entre a assistência, trauteiam-se Os Vampiros, sem letra, canção de José Afonso que, editada em disco em 1963, estava proibida.
Mesmo que a linguagem fosse discreta, tudo servia para afrontar o regime e os agentes policiais presentes. Manuel Freire, no palco, diz que se esqueceu da letra de algumas canções no comboio. Rebentam palmas e assobios. Ao público, entrosado, José Jorge Letria diz o que gostaria de cantar, se pudesse… mais palmas e risos na plateia.
José Afonso, canta e volta a cantar “Grândola, vila morena”, uma das poucas canções que havia escapado à malha fina da censura, acompanhado por todos os cantores em palco e secundado a plenos pulmões por milhares de vozes em uníssono.
Constantemente vigiado pela PIDE-DGS, nas vésperas do 25 de Abril, José Afonso costuma dormir em casa de amigos para evitar ser preso de novo e foi em casa de um desses amigos que passou a noite de 24 para 25.
Na madrugada de 25 de Abril, a canção Grândola vila Morena viria a ser, a partir das ondas da rádio, a senha para os militares iniciarem as movimentações para derrubar o regime.
Ao tomar conhecimento das notícias dos militares na rua, desloca-se com Fausto ao Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiava no quartel da GNR e se renderia.
Em 30 de Abril vai com Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria, e outros esperar ao aeroporto os companheiros, como José Mário Branco, que regressavam do exílio.
Nessa mesma noite reúnem-se e decidem criar o Colectivo de Acção Cultural, cujo manifesto é lido em dois memoráveis espectáculos musicais no Porto e em Lisboa, onde actuam os cantores de intervenção. Porém, com sensibilidades e projectos diferentes, esse espírito de unidade não resistiria muito tempo, seguindo por caminhos diferentes, embora sempre actuantes e voluntariosos no processo revolucionário que se abria.
Intervém intensamente em todo esse período como cantor e como cidadão e entusiasticamente participa com Francisco Fanhais e o realizador Luís Filipe Rocha nas Campanhas de Dinamização Cultural, onde se inspira para compor, por exemplo, Em terras de Trás-os-Montes.
Actua tanto em fábricas ocupadas como em herdades da reforma Agrária ou em bairros pobres.
O seu LP, Com as minhas tamanquinhas, editado em 1976 expressa esse envolvimento, incluindo temas como Os Índios da Meia Praia, inspirado na reconversão de um bairro degradado de pescadores pelo Programa SAAL, com grande envolvimento e participação dos moradores.
A solidariedade coma Reforma Agrário levou José Afonso e companheiros seus a dar espectáculos no estrangeiro. Foi o caso do espectáculo realizado em Roma em 1975, promovido pelos grupos italianos Lotta Continua, Il Manifesto e Avanguarda Operaria, que editaram ainda um disco gravado ao vivo intitulado República, evocando também a luta dos trabalhadores deste jornal, que ocuparam as instalações e continuaram a editar o jornal como órgão de informação alternativa.
A receita da venda do disco, em que participaram também Francisco Fanhais e músicos italianos, reverteu a favor das cooperativas agrícolas da Reforma Agrária, .
O disco, que inclui temas como O Pão que sobra à riqueza, foi gravado em Roma nos estúdios da Santini nos dias 30 de Setembro e 1 de Outubro de 1975 e chegaram a Portugal muito poucos os exemplares do disco, ficando praticamente desconhecido.
José Afonso e Fanhais trouxeram o dinheiro recolhido em Itália, um montante muito considerável, como este recordou, que entregaram ao Secretariado das Cooperativas Agrícolas de Alcoentre.
José Afonso nunca foi de alinhamentos partidários. Esteve antes do 25 de Abril com a oposição democrática e foi sempre generoso na aceitação dos convites que lhe faziam de diferentes partes do país para cantar, sem nunca perguntar quem eram os promotores das iniciativas. No período posterior ao 25 de Abril foi próximo da LUAR, Liga de União e Acção Revolucionária, porventura o mais desalinhado dos movimentos políticos que resistiu à ditadura e se envolveu no período de transição para a democracia.
No verão de 75, além de participar nalgumas iniciativas públicas da LUAR aceitou gravar um single para a organização, que incluía as faixas Foi na Cidade do sado e Viva o Poder Popular.
O tema Foi na Cidade do Sado evoca um acontecimento que viveu de perto – as movimentações de direita na cidade de Setúbal, que alguns ligam ao processo preparatório da tentativa de golpe de 11 de Março, comandado pelo general Spínola.
Experiência fugaz num percurso sempre marcado pelas preocupações de unidade em volta de valores e princípios claros.
No verão de 1976, José Afonso apoia a candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho à Presidência da República. Moveu-o a adesão e o entusiasmo que a candidatura suscitou, a possibilidade de alargar os horizontes da participação e da mobilização popular, como reconheceu em entrevista. Viveu intensamente essa campanha, acompanhando Otelo de norte a sul do país, participando em sessões públicas e enfrentando situações adversas.
Andarilho desde sempre, foram frequentes as suas deslocações ao estrangeiro para cantar. Alguns dos seus discos, porventura os mais importantes, foram gravados em França ou na Inglaterra. Principalmente em França canta para núcleos de emigrantes. Conhece os jovens cantores exilados como José Mário Branco, Sérgio Godinho, Luís Cília. Relaciona-se com Paco Ibañez e outros cantores de intervenção.
Deambulou pela Galiza, que considerava como segunda pátria, desde início dos anos 70, muito na companhia de Benedicto García Villar, em Ourense, Lugo, Santiago de Compostela, onde conheceu outros cantores, que o tinham por irmão, fortemente solidário da língua e da cultura galegas.
Sem que nunca o tenha interrompido completamente, mesmo na fase mais intensa do período revolucionário nunca deixou de se deslocar ao estrangeiro, actuando em espectáculos de solidariedade com a revolução portuguesa, mas foi sobretudo depois, ostracizado no país, que os convites vindos de fora se multiplicam. José Afonso e a sua música tornavam-se um símbolo da revolução portuguesa. Actuou em Espanha, França, na Bélgica, em Itália, na Inglaterra, na Holanda…. Na Alemanha, por exemplo, numa digressão que realizou em 1980, em 18 dias realizou 15 concertos. Discos seus eram editados e as canções traduzidas em várias línguas
O concerto de José Afonso no Coliseu de Lisboa a 29 de Janeiro de 1983, organizado pela cooperativa Era Nova, de que foi fundador, fez desfilar perante uma assistência emocionada, vinda de vários pontos do país e da Galiza, também por sabê-lo doente, grandes temas do seu repertório, expressando as várias fases do seu percurso, e, igual a si próprio, foi dedicando e comentando cada um dos temas que cantava, chamando companheiros como Fausto, Francisco Fanhais ou Rui Pato a acompanhá-lo.
Evocou a morte recente de Adriano Correia de Oliveira, lembrou as primeiras canções dos tempos de Coimbra, manifestou a solidariedade com os povos das ex-colónias portuguesas que adquiriram a independência, cantou os temas de raiz popular tradicional que recolheu e compôs, elogiou os tempos revolucionários de 74-75 e não escondeu a ressaca que se lhe seguiu, cantou a Utopia lembrando a sociedade que entrevira e por que lutara, suscitou frequentemente a adesão do público que o acompanhou de voz erguida.
O concerto terminaria com a Grândola cantada pelo público que lotava a sala com cantores e amigos em palco entoando e, a terminar mesmo o espectáculo, proclamaria “25 de Abril, sempre!”
Doente, praticamente incapacitado do ponto de vista físico, mas lúcido até ao fim, faleceria a 23 de Fevereiro de 1987. Tinha 57 anos. O seu funeral constituiu em Setúbal uma impressionante demonstração unitária de afecto e reconhecimento. Cerca de 50 mil pessoas passaram pela vigília na Escola Secundária de S. Julião e acompanharam-no depois ao cemitério da cidade. Os seus companheiros da canção de protesto carregaram em ombros a urna, apenas coberta por uma bandeira vermelha sem insígnias. A banda da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense acompanha o cortejo. Nesse dia 30 rádios locais emitiram simultaneamente a Grândola, vila morena. Não era uma despedida, mas um “até sempre!”
PIMENTEL, Irene Flunser; VIEIRA, Joaquim (2010) (Dir.). José Afonso, Fotobiografias do Século XX (Col.). Lisboa: Círculo de Leitores Temas e Debates.
SANTOS, João Afonso dos (2002). José Afonso, um olhar fraterno. Lisboa: Caminho.
SANTOS, João Afonso dos (2015). O último dos colonos. Entre um e outro mar. Porto: Sextante.
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LETRIA, José Jorge (2002). Zeca Afonso e a malta das canções. Lisboa: Terramar.
TELES, Viriato (1999). As voltas de um andarilho. Lisboa: Ulmeiro.
Consulte ainda o sítio da Associação José Afonso: www.aja.pt
Com agradecimento a todos aqueles que se têm dedicado à divulgação da vida e obra de José Afonso, a quem recorremos neste dossier.
Este texto cumpre o acordo ortográfico de 1945.